Para a humanidade o oceano sempre foi um ambiente hostil. Na Antiguidade era povoado por criaturas míticas, que de alguma forma traziam ameaças ao homem. Sereias; Cila, monstro marinho da mitologia grega; o Leviatã, criatura submarina que aterrorizava os navegantes na Idade média, Circe, que apesar de não habitar no elemento água, vivia a beira da praia; o Kraken que ameaçava o imaginário escandinavo, em suma, há uma série de seres que habitam os mares e que conferem a ele uma identidade obscura e ameaçadora. A Bíblia, como afirma Júlia Tomás [1], apresenta o oceano como um elemento prejudicial e devastador, onde a hostilidade de Deus é representada, e é através desse comportamento que os primeiros sinais do apocalipse são interpretados.
Serpente marinha gigante atacando um navio, representada em um mapa do ano de 1539. Autoria: Olaus Magnus.
Para iniciar o nosso ponto de partida, iremos avançar alguns séculos e ancorar na Idade Moderna, no período das grandes navegações e da expansão ultramarina. Necessidades comerciais e religiosas (difusão do Cristianismo) impulsionou o homem moderno a enfrentar o Mare Tenebrum, Mar Tenebroso, como era conhecido o Oceano Atlântico na Idade Média. O reflexo do imaginário fomentado na Antiguidade ainda encontrava ressonância no período medieval. Os homens medievais tinham a crença de que o oceano estava povoado de monstros marinhos e tempestades caóticas que levavam o homem a um abismo sem fim, onde o desconhecido o impossibilitaria de voltar à terra firme. No entanto, entre 1450 e 1800, a descoberta de que os oceanos eram o caminho que conduzia ao poder econômico e político em escala global, mudaria o curso da história. Nesse processo, o oceano, local perigoso e pouco compreendido, onde as pessoas podiam se aventurar, mas nunca permanecer, passou a ocupar uma posição central nos assuntos humanos. As circunstâncias ocorridas no Renascimento, entre os séculos XV e XVI, contribuíram para as inovações tecnológicas que impulsionaram novas descobertas, que deslocaram o homem do mundo agrícola para o mundo urbano. Inúmeras foram as criações da Idade Moderna, dentre elas figuram a imprensa, aperfeiçoamento da caravela e de instrumentos naúticos, o domínio do processo seiger, que viabilizou a produção de moedas na Europa, o canhão de bronze, a construção do galeão de três mastros, com leme à popa dentre outras invenções que resultaram na expansão europeia [2].
É nesse contexto, permeado pelas inovações técnicas, que personagens esquecidos são resgatados. Essas personalidades tiveram prestígio na Antiguidade, quando as cidades-estados adotaram a Talassocracia como forma de poder: eram os homens do mar [3]. É nesse espaço, o mar, que é por excelência o lugar do medo, que o homem moderno, nesse caso nos referimos aos que estão de alguma forma relacionados à vida marítima, passa a maior parte de seu tempo e alimenta inúmeras lendas e fantasias que impactam na forma de pensar de toda uma sociedade. O oceano é um lugar duplamente perigoso, pois quando está calmo e jaz imóvel prenuncia a morte para os tripulantes, que podem morrer de fome e sede, e quando está agitado o vento direciona o navio para onde quer.
Jean Delumeau[4], em seu livro História do Medo no Ocidente, apresenta-nos uma série de provérbios da Antiguidade ao século XIX que denotam o receio de arriscar-se no mar. Na Holanda, de essência naturalmente marítima, era conhecido o ditado: "Mais vale estar na charneca com um velha carroça do que no mar num navio novo". Era costume dos latinos dizer: "Louvai o mar, mas conservai-nos na margem". Erasmo de Roterdã, escreveu em seu colóquio Naufragium: "Que loucura confiar-se no mar!". Sancho Pança, personagem do livro Don Quixote de La Mancha, do romancista espanhol Miguel de Cervantes, em uma de suas falas profere: "Se queres aprender a rezar, vai para o mar". Jean Delumeau aponta que esse provérbio é encontrado na Europa em diversas variações, como na Dinamarca, onde se falava: "Quem não sabe rezar deve ir para o mar; e quem não sabe dormir deve ir à igreja". Durante toda a Idade Moderna o homem que lida com o mar continua cauteloso não apenas pelo ensinamento dos provérbios, mas também pelos avisos expressos pelo discurso poético e pelos relatos de viajantes, como por exemplo o dos peregrinos em viagem para Jerusalém. No próximo post veremos trechos de algumas obras que expressam essas advertências, e a partir disso traçaremos um ângulo de análise observando que elementos estavam presentes nesses discursos.
Autoria: Andressa Freitas dos Santos, estudante da graduação de História (Licenciatura) da UFRN.
Referências:
[1] TOMÁS, Júlia. Ensaio sobre o imaginário marítimo dos portugueses. Braga: CECS - Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade. Universidade do Minho, Braga, Portugal, 2013. Clique aqui para ler mais sobre o assunto.
[2] ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1985. Para ver detalhes sobre a obra clique aqui.
[2] ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1985. Para ver detalhes sobre a obra clique aqui.
[3] SILVA, Luiz Geraldo. 2001. A Faina, a Festa e o Rito: Uma etnografia histórica sobre as gentes do mar (sécs XVII ao XIX). Campinas: Papirus. Esta obra pode ser lida parcialmente aqui.
[4] DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Conheça mais sobre Jean Delumeau aqui.
[4] DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Conheça mais sobre Jean Delumeau aqui.

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